quarta-feira, 28 de abril de 2010

Os abusados

E lá vai, o enorme post de hoje:


A Sangue Frio e O Abusado. O que teriam em comum esses dois livros escritos em tempo e espaço tão diferentes dentro da história do jornalismo? Simples, as aproximações controversas dos autores com os ditos “marginais” sociedade. A primeira diz respeito à Truman Capote, que escreveu sobre o assassinato de quatro membros de uma família do Kansas, nos Estados Unidos, em 1959. Para descobrir o que afinal de contas tinha feito dois jovens cometerem um assassinato tão cruel, ele acabou se tornando amigo íntimo deles, com laços como pagar o advogado para os dois.
Ainda hoje é controverso se o interesse de Capote era buscar uma história que lhe rendesse o seu melhor livro ou se realmente como supõem muitos autores ele tenha tido um caso amoroso com um dos dois assassinos. O fato é que este relacionamento tão próximo fez que muitos o condenassem pela maneira “apaixonada” como retratou os assassinos. E é neste ponto que esta história se assemelha com a história de Caco Barcellos. Muitos acusam o jornalista ter tratado o traficante Marcinho VP (que no livro aparece como Juliano VP) como um herói.

Pude ver pessoalmente Caco Barcellos responder a este questionamento em uma fala em 2009. Caco Barcellos respondeu com convicção que jamais quis colocar Marcinho VP como herói, que no livro apareciam todos os assassinatos entre outros atos desumanos que ele havia cometidos, porém, ele não mostrou só isso, mostrou todas as outras faces do traficante. Afinal, dentro de uma mesma pessoa há sempre muitos lados.
Capote pode ter talvez exagerado na sua relação com os assassinos, porém, quanto ao caso de Caco Barcellos parece que a preocupação dele não foi passar uma boa imagem de um traficante, mas de mostrar todas as relações que existem entre o tráfico e a sociedade, e que muitas vezes, ficam esquecidas pela mídia tradicional.
Caco desglamuriza a figura do traficante, mostrando que nenhum traficante é rico como se pensa, pelo contrário, ganham pouco, porém um pouco que comparado aos salários das outras pessoas do morro, não é tão pouco assim (empregadas, empregados da construção civil, metalúrgicos e etc.). O traficante não tem casa própria e tão pouco muitos pertences, já que a qualquer momento outra facção ou a polícia podem invadir o morro e ele precisa mudar sempre de esconderijos. Carro nem adianta ter, pois para andar nas vielas e ruas sinuosas na favela, só correndo mesmo.
Porém, dentro do morro entrar no tráfico é vantagem, os traficantes muitas namoradas,a chance de ter os bens que eles costumam ver nos “bacanas” das zonas nobres do Rio de Janeiro, como calças e bonés de marcas como Adidas e Nike. Caco contou em outra fala que costumava ser chamado no morro de “Otário”. E um dos questionamentos que foi posto a ele pelos meninos do morro foi responder: “Por quê o bacana tem duas mães e eu só tenho uma no domingo?”.
Ou seja, os meninos do morro queriam saber por que a mãe deles tinha que ir para os bairros nobres trabalhar na segunda-feira, muitas vezes passando a semana na casa do patrão, voltando ao morro só no sábado. Tendo somente este dia onde já estava cansadas para ficar com seu filho e ainda fazer seus afazeres domésticos. Caco mostra que é complicado para um filho que vê sua mãe fazer tudo isso e ganhar uma miséria, e que vê também, seu pai também trabalhar a vida inteira e nunca ser valorizado com um salário digno, não entrar na vida do dinheiro mais fácil e rápido do tráfico.
Quando ocorrem mudanças nas favelas, como melhorias, não são feitas pelo poder público e sim pelos traficantes. Carentes de serviços básicos, as favelas brasileiras tiveram que fazer tudo por si próprias. Desde prover o gás, dar dinheiro e outros atos do tipo para família necessitadas, resolver brigas na comunidade,promover festas e até mesmo ajudar pessoas ligadas ao tráfico a subir com as sacolas de compras até o alto do morro são atos que o tráfico se encarregou.
Além disto, quem sustenta o tráfico? E cabe perguntar ainda mais do que isso, se não existisse o tráfico qual o rumo que tantos meninos do morro tomariam? Caco argumentou que eles não querem seguir a vida sofrida do pai e da mãe, todos eles tem plena consciência que não existe traficante que viva muito, a escolha deles é muito difícil, ainda mais sem o apoio de políticas públicas. Ainda sobre a pergunta a cima, de que rumo o morro tomaria, em seu livro Caco conta que teve uma época em que o seqüestro relâmpago se tornou muito comum no Rio de Janeiro, isto porque ele rendia dinheiro rapidamente. Se não existe o tráfico e levando em consideração que estes meninos não querem seguir o exemplo de pais e mães, o que aconteceria? Talvez as cidades ficassem ainda mais violentas.
É muito fácil abordar as questões de uma maneira maniqueísta como a mídia tradicional faz. Este é o certo e este é o errado, como se na vida real assim como nas novelas existissem mocinhos e bandidos. Porém, cada questão tem muito outros ângulos pelos quais pode ser observado. O fato de um menino se tornar o dono de um morro, tem muitas explicações e razões sociais e não uma simples escolha pelo “mal”.
É assim que Caco Barcellos consegue penetrar em uma realidade completamente diferente da sua e ser muito bem recebido no morro, ao ponto de se tornar amigo intimo do traficando Marcinho VP (no livro tratado como Juliano VP) na época o chefe do tráfico no morro Santa Marta. Como já falei, ele não o glorifica, nem o condena, mostra os fatos e deixar par ao leitor a reflexão crítica sobre eles. Mostra o lado cruel, o lado humano, o lado amoroso e até o lado preconceituoso do traficante. Quando como o VP vai a um show do Renato Russo e fica indignado e vai embora quando descobre que ele é homossexual. Essa profundidade e intensidade demandam tempo, no caso deste livro foram sete anos de estudos.
É muito diferente das informações sucintas e superficiais da mídia atual. Não há exemplo melhor para ilustrar isso do que uma entrevista que VP deu aos jornais quando autorizou Michael Jackson a gravar um clipe em sua favela. Ele argumentou que queria dar a entrevista, mas que poderia ser preso depois, porém os repórteres insistiram. Assim, foi fechado um acordo, eles diriam que entrevistaram um traficante da zona sul e não iam identificar quem era a pessoa. No final das contas, fecharam acordo em uma entrevista com um traficante do morro Santa Marta, sem revelar exatamente quem e que era o dono da boca. Selarão as mãos para mostrar compromisso e deram palavra de honra. Juliano surpreendeu os jornalistas dizendo-se contra as drogas e que não tinha grandes vícios. Segundo ele, o povo não estava preparado para a droga, e ela aniquilava a revolução social, já que quem consome não consegue ver as coisas erradas do sistema. A sua frase “Não cheiro, não bebo. Eu só fumo o mato certo”, acabou virando nos jornais “Não cheiro, não bebo. Eu só fumo e mato o certo”.
Tentou explicar também a incoerência de ser contra as drogas e ao mesmo tempo traficá-las, com um discurso confuso :"Noventa por cento das pessoas da favela ganham o salário mínimo. Ninguém consegue viver com isso. A cesta básica custa 114 reais. O tráfico funciona como inibidor dessas necessidades. Se eu não vendesse, outra pessoa ocuparia meu lugar e isto poderia ser prejudicial à comunidade. Tem um rap do grupo Racionais MC de São Paulo, que diz: 'Se afaste das drogas e das coisas fáceis. Leia livros.' É isso que eu tento passar a eles."
Declarou- se ainda, contra a venda do crack e o sequestro. O crack, segundo ele fazia muito mal e ele não queria prejudicar as pessoas ainda mais, se não, poderia ganhar muito dinheiro com ele. O segundo por que ele próprio já foi vítima de seqüestro da polícia, para extorquir dinheiro dele. Sobre os polícias, argumentou que um policial que usa farda e distintivo e ganha R$ 300,oo reais por mês vai se corromper.Segundo ele, a guerra do pó, no Rio, mata mais gente que a guerra da Bósnia.
Explicou que buscava a paz e a harmonia no seu morro e não queria que ninguém viesse tomá-lo, embora não se considera-se o Robin Hood e admiti-se o que fazia de arrado, argumentou que quer passar a todos os jovens - do movimento ou não - a idéia de justiça social, como nasceu e foi criado no morro e ajuda os mais necessitados, ele acaba reconhecido pelo seu trabalho. E também gosto de guerrear, mas só quando é necessário.
Sobre a bíblia declarou: "Já levei oito tiros de fuzil. Não posso ter medo de morrer. Sou católico, acredito em Deus. Li a Bíblia, mas não gostei. A Bíblia mistifica um pensamento que segurou o povo por séculos”. Sobre organização rival, o Terceiro comando, argumentou que ela não tomava conta das viúvas dos companheiros que foram mortos. Eles não davam valor ao soldado e ao guerreiro, só pensavam no poder: "Nossa diferença é que sabemos distinguir o certo do errado. O certo é o certo, nunca o errado ou o duvidoso. Somos normais como qualquer outra pessoa. Eu sempre admirei o Orlando Jogador, que foi um bandido correto dentro do CV. Ele nunca traiu sua gente. Era exemplar. Estivemos presos juntos. Acho que o crime organizado precisa cultivar mais o respeito e menos o poder. O Comando Vermelho é uma filosofia dentro da vida errada. Ele deveria se unir ainda mais, para melhorar a vida nos morros e nas penitenciárias. Temos que parar com essa história de irmão matar irmão. A idéia é fazer reinar nos morros paz, justiça e liberdade”.
O jornal O Dia transformou em título da entrevista uma frase que Juliano não disse: "O tráfico está pronto para guerra”.A manchete de O Globo foi "Traficante comanda a segurança e desafia a polícia ". Omitiu que o acordo havia sido rompido e destacou a ameaça de Juliano aos repórteres: "Se colocaram meu nome nas reportagens, compro o endereço de vocês e mando buscar".O Jornal do Brasil escreveu abaixo do título "o Dono do morro Santa Marta" que o "líder do tráfico na favela saúda Michael Jackson, protesta contra a desigualdade social e revela ser um assassino frio e vaidoso", palavras que Juliano não disse.
O jornalista que se interessa e que quer fazer um jornalismo literário bem feito, vai ter que “entrar de cabeça” em uma pesquisa árdua na busca de tentar chegar à verdade sobre os fatos, ou o mais perto disso. Muitas vezes isso consumirá também a sua alma, ou seja, a sua vida em todos os aspectos. Não só pelo tempo, mas pela questão psicológica que isso envolve. Ao que tudo indica, Capote jamais se recuperou da história que publicou. Mas por outro lado, foi essa mesma história que rendeu maior reconhecimento ao escritor
Falando assim sobre o livro, parece que ele é uma simples escolha do autor. Porém, um livro envolve muitos outros fatores para sua confecção. Caco Barcellos, por exemplo, neste livro, trabalhou somente aos finais de semana ou depois de sua exaustiva jornada de trabalho na TV de 12 ou 14 horas diárias. Entrar na comunidade foi mais fácil para o autor, pois ele já circulava por diversos morros por conta de um programa seu para a televisão. O repórter trabalhava em São Paulo e ficava sempre de olho no celular, pois quando acontecia um velório de alguém do morro ele ia para o Rio de Janeiro. Nos velórios era mais fácil de progredir no trabalho, pois muitas pessoas se encontravam lá e este número de pessoas reunidas facilitava as coisas, já que era difícil em outros momentos no morro que isso ocorresse. Outro ponto difícil no trabalho, era o fato de que no tráfico as mortes são seguidas, então muito dos personagens que faziam parte do livro de Caco morriam de uma hora para outra e ele tinha que começar do zero de novo, indo atrás de novas fontes.
É preciso muito amor a escrita para deixar que ela consuma sua vida em todos os aspectos. Afinal de contas, Capote jamais se recuperou da história que publicou. Um livro reportagem exige um trabalho árduo do jornalista, que será transformado em conhecimento e provavelmente repercutirá na sociedade. Assim, além de um grande aprendizagem, vida do jornalista pode mudar completamente depois de uma publicação deste teor. Outro fator há ser lembrado é a questão econômica nesta história.Os gastos de Caco foram todos custeados por ele e hoje as editoras dão apenas 10% do arrecadado com o livro para o autor.
Fazer um livro reportagem é nos aspectos profissionais, psicológicos e econômicos um desafio.Porém, um desafio que nós jornalistas que procuramos chegar o mais próximo possível da verdade dos fatos, mesmo que ela não exista, sonhamos em enfrentar com êxito.
Se trumam Capote escreveu uma nova página na história do jornalismo com “A Sangue Frio”, os livros de Caco Barcellos também são hoje verdadeiros “Baldes de água fria” para acordar a sociedade para as suas tristes realidades.

Ufa...!

2 comentários:

  1. Eu preciso de uma informação que tem me "cafifado" nesses tempos.
    quando li o livro Abusado, por sinal maravilhoso, tão bom que alguem tomou emprestado e até hoje não me devolver nem eu me lembro que foi.
    Ao terminar o livro eu quis saber onde estava Macinho VP, fiz uma pesquisa na Internet e li que ele havia morrido, barbaramente assassinado na penitenciaria e seu corpo jogado no tonel de lixo.
    A pouco tempo atrás, nas reportagens do morro do alemão vi Macinho VP preso.
    Então é outro Macinho ou a infformação de que ele havia morrido era salsa?
    Obrigado

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